sábado, 21 de março de 2009

Corpo a Corpo

O papa disse mal do preservativo. Disse-o em África, à chegada aos Camarões, e a propósito do combate ao HIV/sida. "O preservativo não combate a sida. Só piora". Dos governos francês, alemão, belga, holandês e luxemburguês às organizações de combate à sida, passando pela nossa ministra da Saúde, choveram os repúdios. É normal, claro, que as pessoas se escandalizem com as afirmações em causa, e mais ainda por serem proferidas num país e num continente onde o vírus da sida se transmite e mata a uma velocidade aterradora, sendo que a generalidade dos milhões de infecções e mortes se devem, naquele contexto, a sexo não protegido – o que implica que se o preservativo for mais utilizado se evitarão muitas infecções e mortes. Mas também é normal que o papa diga o que disse – afinal, está apenas a repetir a doutrina vaticana sobre o assunto, doutrina que o seu antecessor, em funções quando a doença foi descoberta, sempre professou.

Para o Vaticano, o sexo é para suceder só no casamento, dentro da mais rigorosa fidelidade, e com vista à concepção. Não há para o Vaticano, com sida ou sem sida, excepção a essa regra, mesmo que a excepção salve vidas. Aliás, quando tomou posse, este papa disse que a luta pelos valores que professa – aqueles que considera “a verdade” – será uma luta “rua a rua, casa a casa”. Uma luta corpo a corpo, portanto. O papa não estremece perante os corpos ceifados pela sida porque para ele o problema é outro – eles pecaram e se não tivessem pecado não tinham sida. Para Bento XVI e para quem como ele pensa (sejam os seus cardeais, João César das Neves ou quaisquer mullahs), o que interessa é a defesa de um “bem superior”, “bem” esse que, convenientemente, se faz traduzir por uns escolhidos. Perfeita ilustração dessa ideia de bem é o discurso de José Cardoso Sobrinho, o bispo brasileiro famoso por excomungar toda a gente que ajudou uma menina de nove anos grávida de gémeos por violação a abortar. À revista Veja de anteontem, Sobrinho assegura que “não é lícito, para salvar uma vida, eliminar a vida de dois inocentes”. Para este homem, que reconhece na entrevista nem saber o nome da menina, a vida dela é igual à dos dois embriões. Aliás, vale menos: porque os embriões são uma ideia de pureza, e ela, com nove anos, já não é “inocente”.

Isto, em todo o seu esplendor, é o catecismo do Vaticano.Confesso ter dificuldade em distingui-lo, no campo dos princípios e dos resultados práticos, do dos selvagens que na Somália apedrejaram até à morte uma menina de 14 anos por ter sido violada. E se só assusta o Ocidente quando o papa vai a África dizer mal do preservativo ou quando um bispo Sobrinho fala é porque só nestas ocasiões, quando exercido num contexto de ignorância e miséria em que ainda pode mandar, nos lembramos dele e do que quer.


Fernanda Câncio, in DN 20.03.2009

Notas adicionais JRP:
1 - A entrevista ao Dom José Cardoso Sobrinho está aqui!, e podem ver os excertos mais interessantes aqui!
2 - Sempre que leio a Fernada Câncio tenho medo de levar um soco... é rija, é dura... irra!

2 comentários:

César disse...

Várias vezes parei para pensar na verdadeira dimensão da Igreja e perco-me. Não existe instituição com mais história, com mais dinheiro ou com mais poder. Influencia massas a um nível ultra gigante, mais do que qualquer partido, mais do que qualquer país. Por isto e principalmente porque acredito que nunca se deve por em causa a fé dos outros eu respeito esta instituição embora a mim pouco me diga.

Agora, tamanha dimensão não deveria implicar outro tipo de posição na sociedade?
Faz sentido repudiar o uso do preservativo quando morrem tantos inocentes por não usarem?
Faz sentido condenar a dissolução do casamento, enquanto houver uma vida que seja a perder-se vítima de violência doméstica?

Como já referi, posso não concordar mas respeito as posições da Igreja, agora ninguém me convence que nos dias de hoje as lutas que Ratzinger e Igreja travam sejam as verdadeiramente importantes.

André Lage disse...

Para mim, a Igreja e o que andou a fazer ao longo da História, metem-me tanto asco que nem vou perder tempo a comentar ainda mais este texto.
Era nascer um pinheiro no cu de um beato por cada mulher que foi queimada por ler livros ou por cada puto abusado. Isto para dizer o menos mau...